sábado, 29 de fevereiro de 2020

A Crise Do Covid-19

A crise do covid-19 tem uma dimensão global. A fase de contenção passou entre o silêncio dos políticos e a fábula dos relatórios da OMS. Para além do vírus que circula silencioso pelo Mundo globalizado, circula também a complacência das autoridades e o medo das populações. O leitor que percorre estas linhas no écran luminoso do computador sente-se seguro? Houve demasiada passividade, demasiada confiança na ciência, demasiada dependência da China, demasiada despreocupação. Enquanto o vírus seguia a sua biologia, as autoridades globais assobiavam para o ar espesso e estranho, tal como uma criança que fechada num quarto escuro assobia para o vazio para afastar o medo. Agora que o vírus circula em classe turística pela Europa, o pânico espreita nas ruas vazias do norte de Itália. (...)
O vírus tornou-se uma variação mutante que percorre o Mundo à velocidade da globalização. São tantas as críticas económicas e políticas ao fenómeno da globalização e foi preciso a dimensão micro de um vírus originário da China para expor a natureza frágil do Mundo global, para revelar a constituição volátil de um fenómeno poderoso que enriquece o Mundo e melhora o índice de bem-estar da população.
Afinal, a futilidade das construções políticas humanas não resistem aos imperativos deterministas e darwinistas de um simples e complexo vírus. Um outro efeito colateral do vírus é a febril percepção de que a China é no tempo contemporâneo a grande fábrica do Mundo capitalista, de tal modo que a regressão estática da China representa a paralisação dinâmica do Ocidente em particular e do Mundo global na sua planetária extensão.
O covid-19 vem realçar a fluidez do Mundo actual, vem sublinhar uma espécie de “crónica da sociedade líquida”. Apesar de todas as ilusões, não existe uma comunidade global, mas sim um aglomerado de indivíduos em permanente competição face a uma permanente ameaça. As certezas são mínimas, os pontos de estabilidade e de referência dissolvem-se no éter da globalização. A identidade dos indivíduos desliza ao sabor efémero das escolhas particulares no Mundo global da produção e do consumo.
Tal como um vírus, as escolhas individuais estão sujeitas às oscilações do mercado, estão dependentes da estabilidade de um comércio global que não é senão a perpétua procura de uma identidade fluida alimentada pela desordem dos desejos. O covid-19 representa o colapso da liquefacção da liberdade e da identidade, remetendo tudo para a natureza efémera dos desejos e para a condição mortal dos indivíduos. Pela ganância, pela gula, pelo consumo, o vírus circula pela fragilidade do factor humano.
(Excertos de um texto de carlos Marques de Almeida, Eco)

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