segunda-feira, 28 de agosto de 2017
Do Outro Lado Da Guerra Cultural Não há Voz Nem Vontade ...
... O comprometimento deixou de ter significado e perdeu poder de convocatória? Não sei, mas a fractura é grande.
1. Vigiam-nos. Estão atentos. Estão de serviço. Mobilizados pelo pensamento único, uma nova forma de vida. Nunca se cansam. São ferozes na vigilância, implacáveis na perseguição, sonoros na censura. A nova cartilha e os seus mandamentos não incluem desvios. A nobre arte de debater, a esgrima dos argumentos, a relevância da dúvida, o valor da discordância, estão proibidos pela própria natureza da subversão civilizacional em curso.
Os novos proprietários querem-nos fora de pé, ao largo de nos próprios, cortados pela raiz do que somos e representamos. Querem que nos transfiguremos noutros, atraiçoando o nosso “nós” individual e anestesiando o “nós” colectivo.
Querem-no com ferocidade, não usando de contemplação: o castigo terá apenas o limite da sua própria obscenidade: a intimidação, a denúncia, a manipulação, a mentira, o escárnio público, abater-se-ão sobre os prevaricadores, qual raio ou trovão. A extrema-esquerda, radical de seu nome próprio, é aliás exímia na aplicação destes instrumentos que manuseia com a habilidade ácida do ódio. Temo-lo visto. É preciso licença prévia para pensar e depois dizer alto o que se pensou.
Qualquer “forma mentis” que não encaixe no novo código de conduta está automaticamente banida do seu direito de cidade, privada do oxigénio da liberdade e da vitamínica possibilidade da interrogação e debate. Há uma guerra cultural em curso.
2. Os novos proprietários das mentes&costumes não valem grande coisa eleitoralmente, nunca governarão sozinhos, o seu número no país é inversamente proporcional ao eco mediático que os propaga mas para quem não estiver distraído nada disso tem porém grande importância. Não tem, porque não é disso que se trata. É mais substancial, mais fundo, mais grave. Por isso, eles valem pelo que os deixamos conseguir valer.
Valem pelo aparente êxito com que corroem os alicerces que sustentam o berço civilizacional de onde somos, valem pelo modo como vão calcinando o que conhecemos como nosso mundo. Valem porque exibem o fôlego e a mestria dessa demencial empreitada que é o determinarem-nos: formantando-nos as mentes, anestesiando–nos as reações, domesticando-nos o instinto, incutindo-nos o receio de destoar. De ser expulso do coro onde impuseram uma nota só.
E valem, claro, pela desenvolta segurança de quem se implantou – cá dentro e lá fora — com estratégia e método. Ocupando lugares chaves tão relevantes como a Academia e a Media, convocando a Ciência para o festim, não descurando parte dos sistemas partidários, não esquecendo as representações parlamentares, cuidando da propaganda e do espectáculo. Oficializando enfim um novo mapa cultural e um guia moral (?) desconexos, híbridos, convulsivos, sem raiz. Saídos do nada. Em nome de uma abstrata “culpa ocidental” abatem-se valores, padrões, referências, história, memória (mas saberão eles que não há organização social capaz de vencer sem valores e sem passado?). Abatem-se como árvores, em nome do repúdio pela herança civilizacional recebida. Os novos proprietários exigem-nos numa palavra, que mudemos de pele cultural.
Impossível De Explicar ...
Há uma parte subterrânea nas obras de arte impossível de explicar. Como no amor. Esse mistério é, talvez seja, a própria essência do acto criador. A gente não sabe ...
António Lobo Antunes
António Lobo Antunes

