O ministro Augusto Santos Silva sabe perfeitamente que o PS garantiu “algum apoio parlamentar” encostando-se “a quem gosta de ditadores e tiranos” – ou, pelo menos, a quem não os critica.
O PS sobe por vezes tão alto na propaganda da sua superioridade moral que arrisca a estatelar-se com estrondo. Esta quarta-feira aconteceu. Quando o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, diz no Parlamento que não pertence a um partido “encostado a quem gosta de ditadores e tiranos para efeitos apenas de garantir algum apoio governamental”, tolerou dois tipos de reacções: as que se preocupam com a sua falta de memória; e as que se indignam com o seu malabarismo. Seja qual for a origem da gaffe, premeditada ou acidental, é óbvio que, para censurar o Chega e os partidos que deram a mão a Ventura na “caranguejola” açoriana, não é preciso passar o pano pelo radicalismo do Bloco e, principalmente, pela velha amizade do PCP com certos tiranos. Da mesma forma, para deplorar a normalização da extrema-direita não faz sentido branquear a faceta da extrema-esquerda que pouco tem que ver com a democracia liberal.
Cedamos ao relativismo para assumir que é menos grave apoiar um ditador ignóbil como Nicolás Maduro do que defender medidas penais da idade das cavernas como a castração química de pedófilos. Ou notar que é menos perigoso para a democracia portuguesa poupar uma relíquia estalinista em Pyongyang do que defender medidas discriminatórias contra uma etnia no Alentejo. Mas, mesmo estando de acordo com este ponto de partida, o ministro Augusto Santos Silva sabe perfeitamente que o PS garantiu “algum apoio parlamentar” encostando-se “a quem gosta de ditadores e tiranos” – ou, pelo menos, a quem não os critica. Não o Bloco de Esquerda, que, apesar de ser mais contundente a criticar Jair Bolsonaro do que Nicolás Maduro, é inequívoco na condenação dos ditadores; mas sim o PCP, que tem uma longa tradição de condescender com os tiranos em Angola, na Venezuela, em Cuba ou na Coreia do Norte.
O ministro acabou por dar razão à ambiguidade que tende a desculpar o acordo com o Chega com o acordo da “geringonça”. Insista-se: sendo todos os extremismos um risco, hoje o comunismo é uma relíquia inofensiva, o radicalismo do Bloco uma esquerda “gourmet” cada vez mais seduzida pela social-democracia. O que é de facto perigoso é a vaga da extrema-direita que assola a Europa e que tanto cativa André Ventura. Mas até por isso há que ter cuidado com as palavras e não pretender que só há amigos de tiranos e ditadores no Chega. Não tendo esse cuidado, Santos Silva dá armas ao adversário. Entrar na lógica de que o “nosso” extremista é melhor do que o extremista dos outros é meio caminho andado para que todos sejam iguais.
Editorial do Público, Manuel Carvalho
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