Numa realidade que, mediatizando-se, deixou de ser imune às crenças sobre a própria realidade, a relação com a verdade deixa de ser imune à persuasão. O preço de um mundo mais humano, cada vez mais exclusivamente humano, é um mundo cada vez mais indiferente à diferença entre realidade e sua representação, entre verdade e persuasão.
É cada vez mais um mundo faz de conta, que convém a uma democracia teatralizada, espectáculo encenado que deixa a realidade com consequências nos bastidores invisíveis à decisão colectiva, algo a que em ciência política se passou a chamar pós-democracia. É só meia coincidência que os livros Post-Democracy, de Colin Crouch, e The Post-Truth Era, de Ralph Keyes, sejam ambos de 2004 e colem o mesmo prefixo “pós” à verdade e à democracia. Uma e outra não podiam estar mais destinadas ao mesmo fim, seja continuando seja dando lugar a outra coisa que não se adivinha boa.
Apesar da imersão social mediática generalizada, nem todo o real perdeu a imunidade à crença. Mas esse outro real fica longínquo daquele quotidiano em que intervimos, fiados nas nossas ilusões de autonomia. Seja o mundo natural, que se reserva derradeiramente contra o burburinho humano, seja também a decisão com verdadeiro impacto sobre as condições económicas das nossas vidas, cada vez mais uma decisão à margem do centro de legitimação democrática, seja ainda a tecnologia que, produzindo e reproduzindo-se, nos vai subtraindo do processo produtivo.
André Barata, JE
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