Em Varsóvia, na quinta-feira passada, Donald Trump proferiu o melhor discurso desde o início do seu mandato. Como tem sido observado, foi certamente escrito por detentores de um vocabulário mais vasto do que o habitualmente utilizado pelo actual presidente. E, sobretudo, foi certamente escrito por um ou vários membros do chamado “establishment” republicano contra o qual Donald Trump dirigiu a sua campanha presidencial.
“Simplesmente digno de Ronald Reagan”, foi o elogio frequente entre comentadores do centro-direita e vários do centro-esquerda. A surpresa chegaria pouco depois, como José Manuel Fernandes deu conta na edição da passada sexta-feira dos seus excelentes “Macroscópio” — uma das melhores peças regulares da imprensa nacional e internacional.
Informou-nos ele que inúmeros comentadores associados à esquerda do partido democrático atacaram o discurso de Trump com veemência. E o mais surpreendente foi a razão comum aos ataques: ao defender o Ocidente, escreveram vários analistas, Donald Trump estava a defender um “conceito racial e religioso”, basicamente, segundo eles, “branco e cristão”.
Esta crítica não deve ser menosprezada. No plano das ideias — que é o plano que produz mais consequências — esta crítica exprime o beco sem saída a que a ideologia politicamente correcta conduziu uma boa parte da “intelligentsia” pós-moderna ocidental, sobretudo em muitas (mas felizmente não todas) universidades.
Por um lado, ela contesta a aspiração universal dos valores da liberdade e responsabilidade pessoal que estão no centro das modernas democracias liberais. Quando estes valores são apresentados como universais, os críticos pós-modernos denunciam essa aspiração universal como “imperialista”. Dizem que esse universalismo viola as diferenças entre culturas, proclamando como universais valores que são apenas específicos de uma certa cultura — a ocidental. Esta é a base do chamado “multiculturalismo”.
Por outro lado, quando os mesmos valores da liberdade e responsabilidade pessoal são defendidos como parte distintiva da tradição ocidental, os críticos pós-modernos dizem que o conceito de “tradição ocidental” esconde um “nativismo racial [branco] e religioso [cristão]”.
Face ao duplo raciocínio pós-moderno, uma pergunta parece inevitável: se não podemos defender a liberdade como valor universal, e se não podemos defender a liberdade como valor ocidental, seremos ainda autorizados a defender a liberdade?
A pergunta não tem mero intuito retórico. O Ocidente é a tradição cultural que por excelência se define com base em valores, não com base em exclusivismos étnicos ou religiosos. É a tradição fundada nos valores da sociedade aberta, usualmente definidos a partir dos pilares pluralistas de Atenas, Roma e Jerusalém. E é a tradição que historicamente se revelou mais aberta a receber pessoas oriundas de outras tradições.
No entanto, esta mesma tradição ocidental é agora impedida de defender os seus valores. Ao mesmo tempo, ela é moralmente obrigada a receber todos os que, vítimas de sociedades em que esses valores não são respeitados, procuram as sociedades abertas que são fruto dos valores ocidentais. Só que estes são os valores que agora não podemos defender — nem como universais, nem como ocidentais!
(Excertos do artigo de hoje de João Carlos Espada no OBSR)
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