António Barreto, Público
Dia após dia se vai vendo que é um regime delicado. Mesmo se amada pelo povo, sem instituições não vai longe. E sem regras também não. Demasiado rígida, morre por falta de flexibilidade. Excessivamente plástica, peca por dissoluta. Sem atenção nem cuidados, com poucas tradições e menos costumes, a democracia é frágil. Com muitas regras e burocracia a mais, afasta-se dos cidadãos.
O governo de assembleia é uma das modalidades políticas que fazem parte dos universos utópicos e dos devaneios de juventude. Pensa-se em Atenas ou em Roma, em vários senados e em assembleias populares, nos estados gerais e na convenção. Apesar de terem dado mau resultado, há sempre quem espere que um dia um angélico governo de assembleia realizará a esperança democrática de quem sonha. Mesmo sabendo que alguns dos melhores exemplos de governo de assembleia redundaram no terror francês e soviético.
O nosso querido Parlamento, no quadro inédito da relação de forças políticas actuais, procura o seu caminho de assembleia. Os grupos parlamentares arrogam-se direitos que não têm e querem fazer história. Uns querem administrar o sistema financeiro e, para já, fixar custos e comissões dos bancos.
Outros pretendem desempenhar papel importante na determinação do futuro aeroporto de Lisboa que já não se sabe onde é.
Outros ainda decidiram impedir que as linhas de metropolitano de Lisboa sigam um plano, a fim de determinar um novo traçado. Um deputado barulhento e desordeiro pensou que o Parlamento poderia por si só rever a Constituição e instaurar o princípio de Talião no Direito Penal.
Mas o Presidente da Assembleia Ferro Rodrigues também não percebeu muito bem o seu papel e, ajudado por alguns partidos, fez o que pôde para evitar que o deputado exibicionista desse nas vistas e não lhe conceder a palavra nem a iniciativa. Com evidentes resultados contraproducentes.
Da Assembleia da República vieram também as leis sobre a “morte assistida”, cuja aprovação comoveu a opinião e deu origem a reflexões estranhas sobre o referendo e a democracia parlamentar ou directa. A opção pela aprovação desta lei por via legislativa ou por referendo foi discutida com muito calor, mas igualmente com enorme desprezo pela opinião dos eleitores. Estes são inteligentes para uns, estúpidos para outros. Cultos e capazes de decisões racionais para uns e totalmente incapazes e desprovidos de sensatez para outros. O que se deve ou não referendar, o que se pode ou não votar directamente, o que é ou não susceptível de iniciativa popular depende do oportunismo de cada um.
Ainda na Assembleia, este rico alfobre de democracia, mas também viveiro de tolices, tivemos as decisões de Rui Rio e da direcção do PSD: a partir de agora, a comunicação do partido vai passar a ser “gerida”. Isto é, os contactos entre jornalistas e deputados, ou vice-versa, devem ser feitos através dos serviços de imprensa do Grupo Parlamentar e do partido. Cinco dias depois, ainda não havia reacção de qualquer espécie, os deputados visados não manifestaram repugnância nem objecção de consciência. Os deputados dos outros partidos não exprimiram solidariedade nem interesse, eventualmente por receio de que lhes venha acontecer o mesmo. Que se saiba, os jornalistas parlamentares também não reagiram nem recusaram ter de passar pelos serviços para falar com eleitos que supunham livres. Se esta directiva não provoca reacções de repulsa, é permitido concluir que os deputados não merecem a liberdade que deveriam ter. Os jornalistas também não.
Verdadeiramente hilariante foi a intervenção do ministro Pedro Nuno dos Santos a propósito do aeroporto do Montijo. Uma lei demagógica e certamente estúpida estabelece a unanimidade autárquica como necessidade para aprovar o novo aeroporto. Ora, não há unanimidade. Uma ou duas câmaras não concordam e já manifestaram a sua oposição. O ministro não se incomodou: então, diz ele, é necessário mudar a lei. A história é absurda e mais parece um sketch de comédia “levanta-te e ri”. Mas de uma coisa podemos estar certos: algo de parecido vai ser feito. Com habilidades ou dinheiro. Ou os dois.
A Justiça é fértil de incompetências, corrupção, burocracia, injustiças e eternidades de atrasos. Tendo escapado à revolução, fintou a democracia e ludibriou a liberdade. E espera enganar a Europa. Sem um princípio superior e exposta a quezílias internas de poder, a Justiça dá regularmente más notícias. Esta semana também. Uma, a questão dos sorteios aleatórios camuflados, neste caso na Relação de Lisboa, é de uma gravidade tal que as palavras são curtas para a classificar. Outra, a associação da Justiça a bandidos é uma peste a que nos resignámos. A quase certeza de que só os tribunais europeus têm alguma isenta firmeza deixa-nos o espírito alegre, repousa-nos de aflições, mas destrói a esperança de ver que seremos capazes, um dia, de descansar na nossa Justiça!
A democracia é um sistema de governo que depende essencialmente de convenções. Umas traduzidas na lei, outras criadoras de costumes e tradições. Tais convenções são poucas e simples, dizem respeito à capacidade eleitoral dos cidadãos (antigamente dizia-se “um homem…”, hoje diz-se “uma pessoa, um voto”), à periodicidade das eleições livres, aos governos de maioria, ao respeito pelas minorias, aos métodos de governo e legislação e aos sistemas de informação e responsabilidade. O que se atribui geralmente à democracia (igualdade, cultura, educação, saúde, emprego, mercado e muito mais) não é realmente democracia: são políticas públicas e opções sociais e económicas que combinam (ou não) com a democracia e que lhe dão vida e sentido. Num caso, todavia, estamos perante um sistema que, não fazendo parte do conceito clássico, é no entanto essencial à democracia: o Estado de Direito e o sistema de justiça. Por isso, a democracia é tão frágil, tão vulnerável e tão delicada. Depende de tudo e depende de tanto!
Por isso se exige o respeito pelas leis e não se admite que sejam feitas à medida. Por isso se pensa que o sistema de justiça deva ser íntegro. Por isso se espera que os nossos eleitos sejam pessoas livres e responsáveis. Por isso se admite que o melhor governo não é o de uma assembleia executiva e volúvel, mas sim o de um governo responsável perante uma assembleia representativa.
Um só beliscão na democracia é de mais, mas talvez não seja grave. Muitos e seguidos merecem atenção e cuidado.
António Barreto, Público
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