sábado, 19 de dezembro de 2020

Correu tudo de tal maneira que o sistema semipresidencialista fica quase reabilitado. Quase!

Não exerce a influência que tem graças ao seu poder que, à partida, não tinha. Através da sua influência, conquistou poder. Fez-se sentir útil e necessário. O governo precisou dele. O Partido socialista também. E o primeiro-ministro António Costa nem se fala.

Resolveu um problema delicado: o de articular poder com influência. Já tivemos presidentes com uma e sem o outro. Ou vice-versa. Deu geralmente desastre. Ou insignificância. No seu caso, conseguiu raro equilíbrio.

Popular, combateu o populismo. Jurista, privilegiou a política. Intelectual, exprime-se com impressionante simplicidade. (...)


Num ciclo de queda da direita quase irreparável, Marcelo permitiu a sobrevivência de um estado de espírito e de uma memória da direita democrática.

Em algumas áreas importantes, Marcelo perdeu, não conseguiu ter influência, pelo que se distanciou: na Justiça, no SEF, no financiamento do Serviço Nacional de Saúde, na TAP, no Novo Banco… O que se lamenta, pois foram as nódoas negras que ainda hoje afligem o país. Mas tantos fiascos tiveram um lenitivo: foi de influência decisiva em certos casos dramáticos, como os de Tancos e dos incêndios de Pedrógão e de Castelo Branco. (...)



A Presidência de República é, em Portugal, uma ficção. Vistosa e ilusória. Episodicamente, pode revelar-se muito importante. Dá a impressão que tem poder. Julga-se que tem enorme influência. Pode conter drama e paixão. Desperta mais indiferença do que inveja. Raramente satisfaz quem dela espera algo de decisivo. Pede-se-lhe tudo, mas quase nada se obtém. E se nada vem, também não faz mal. Não tem adeptos fervorosos, tem sobretudo áulicos e cortesãos. Mas tem desmedido poder de atracção. É uma verdadeira ficção. Que pode ser uma obra-prima, como se sabe.


(excertos do texto de António Barreto, Público, via Jacarandá )

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