Estas mesmas pedras inspiraram mais tarde, no final do século XIX e nos anos 30 do século XX a fundamentação da imagem do brasão das armas da cidade de Évora. Brasão e Armas da cidade são palavras datadas, cheias de patine, encarregadas e pensadas para educar e transmitir, sob a forma de bonecos, uma história de glorificação da cidade, e que as várias representações e interpretações trouxeram até nós como a sendo a que representa esse episódio do Giraldo Sem Pavor, que através do ludíbrio do amor, conseguiu tomar a cidade de Évora das mãos de uma mulher.
São duas peças escultóricas que representam uma história da cidade, celebrada e homenageada pela propaganda medieval em Évora.
A cidade de Évora em que hoje vivemos é ainda o resultado da usurpação e ocupação de um território herdeiro de civilizações antigas e já definido nas paisagens neolíticas e paleolíticas, como o atesta a Gruta do Escoural. De uma tão ancestral ocupação do território, aqui fixado na paisagem que lhe dá identidade e condiciona a utilização, hoje só recordamos de cor e em forma de lenga-lenga, a história pouco honrosa de um líder de um bando que rouba a uma mulher o poder de uma cidade.
O poder, sempre feudal destas terras, e uma visão localista, perpetuaram a utilização desta imagem até aos dias de hoje. A última vez que a cidade, já de homens livres de todas as opressões, em 1983, se pronunciou sobre a imagem e heráldica da cidade reconfirmou a sangrenta representação de uma traição como feito representativo da cidade. Imagem que foi precipitadamente adotada, da que se representa na frente da Sé, e que nos anos 30 do século passado e sem grande interesse local, se decidiu como imagem representativa de cidade em resposta a um despacho de Lisboa. A sua revisão e estudo desapaixonado vêm sendo feita pelos sucessivos presidentes de Câmara da cidade que a reconhecem.
E ainda que nos esteja vincado na cultura, marcado nos genes, esta terra e as vivências do mediterrâneo foram à força absorvidas pelo norte cristão, de príncipes ansiosos que aqui só viram largueza e monotonia sem interesse e por isso foram logo doadas a donos de terra e de homens como as ordens militares religiosas e àquele senhor de Portel de que ainda hoje por aí há filhos, como também os há dos mediterrâneos que sempre aqui estiveram.
Muito houve que destruir, arrasar, apagar para que a nova noção de nação pudesse pegar e a seguir à destruição construiu-se uma nova imagem, novos heróis, por pouco recomendáveis que fossem como este Giraldo. Estes dois objetos são uma representação, um instrumento de comunicação de uma história que se quis contar, porque era violenta, bárbara e popular e serviu a quem a gerou lá atrás no tempo. Hoje por desinteresse, falta de paixão, foi aceite como sendo o mais nobre feito da cidade. Pode estar num Museu, petrificada, onde a memória e património tem lugar e onde a sua observação e fruição promovem o deleite de quem gostar, o pensamento, a crítica. Mas também pode, com coragem, ser revisto, alterado e pensado numa apaixonada reflexão da cidade sobre o assunto: que imagem é a que temos, queremos ter e transmitir da cidade de Évora.
O Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo tem entrada gratuita aos domingos e feriados até às 14h para todos os cidadãos residentes em território nacional. O texto e fotografia são da exclusiva responsabilidade da autora, Carla Magro Dias, publicado na Tribuna Alentejo.
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