Neste Verão, os portugueses fazem o que não querem, sonham o que não podem, guardam o que não têm, como se o Mundo fosse um grande relógio parado.
Carlos Marques de Almeida, ECO
Este é o Verão do desassossego. Esta é a estação do calor em que o Verão foi cancelado. Os portugueses estão cansados da pandemia, mas o Mundo fecha-se em círculos concêntricos e deixa os portugueses de fora. Sem poderem ir, sem quererem ficar, as férias possíveis são um roteiro interior feito de um slogan em que o ir para fora é ficar cá dentro.
Viajar hoje é percorrer o labirinto de linhas vermelhas que o vírus vai desenhando pelo Mundo, um jogo de tabuleiro num mapa verdadeiro, onde se contam casos e probabilidades, estatísticas e confinamentos, e onde sobra sempre a geografia do desejo, a caligrafia da saudade, a nostalgia dos lugares fechados aos quais não sabemos quando poderemos regressar. O vírus ergue fronteiras em cima de fronteiras, separa no papel os planos de viagem e reserva um lugar para cada um de nós que cada um de nós simplesmente recusa. O vírus é violento e revolucionário e procura com perícia a persistência da vulnerabilidade humana.
O acto de viver existe diariamente com o gesto de morrer, e como membros de uma comunidade de destino temos uma responsabilidade permanente em preservar as nossas vidas e em respeitar ou outros que ocupam os seus lugares no misterioso castelo de cartas. Qualquer dano causado ao outro é um dano causado a nós através do edifício colorido e complexo que designamos por sociedade. O vírus coloca-nos numa posição insuportável próxima da mutilação – o acto de amputar os dedos da mão esquerda com a força dos dedos da mão direita. Uma escolha impossível num Verão que acabará sempre por incomodar na memória.
(excertos do texto de CMA, no Eco)
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