As "discriminações" questionáveis na Administração pública, a "despesa certa e permanente" que poderá nunca o ser e os compromissos que o próprio PS assumiu e agora diz nunca ter assumido.
Na sua declaração ao país, nesta sexta-feira, o primeiro-ministro António Costa apontou baterias aos partidos que aprovaram na Comissão de Educação e Ciência a devolução aos professores de nove anos, quatro meses e dois dias de tempo de serviço congelado, enfatizando o alegado caráter extemporâneo,
injusto e financeiramente irresponsável da medida. Mas alguns dos factos e argumentos a que recorreu são imprecisos, incompletos ou simplesmente controversos. Aqui fica a análise de algumas dessas afirmações.
"O que os portugueses seguramente não percebem é que não tendo nenhum partido proposto que o descongelamento das carreiras fosse acompanhado da recuperação do tempo entretanto congelado, agora à beira das eleições quatro partidos na Assembleia da República se entendam para aprovarem algo que nunca tinham proposto"
António Costa referia-se à ausência desta proposta dos programas de governo ou dos programas eleitorais dos diferentes partidos. Mas é manifestamente impreciso afirmar que só "à beira das eleições" os partidos vieram aprovar "algo que nunca tinham proposto". Quando muito poderia fazer essa acusação a CDS e PSD, PCP, Bloco de Esquerda e Os Verdes fizeram desde 2017, várias propostas no sentido da recuperação de todo o tempo de serviço dos professores. E, mais do que isso, o próprio PS votou favoravelmente, em dezembro de 2017, antes de dar início ao processo negocial, a resolução 1/2018, da Assembleia da República, recomendando ao governo "a contagem de todo o tempo de serviço para efeitos de progressão na carreira", tanto para os professores como para as restantes carreiras especiais. A ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, também parece ter ignorado este facto ao afirmar taxativamente na entrevista concedida esta sexta-feira à noite ao Jornal Nacional, da TVI, que "nunca" foi criada a expectativa de que poderia ser resolvida a questão dos professores indo ao encontro das reivindicações destes.
"Durante este longo período, confrontámo-nos com a reiterada intransigência sindical, que nunca se moveu da repetida reivindicação de nove anos, quatro meses e dois dias, recusando sistematicamente as propostas do governo"
O argumento da "desigualdade" de tratamento entre os funcionários públicos na solução parlamentar é controverso. Quando a progressão nas carreiras foi descongelada, em janeiro de 2018, a generalidade dos trabalhadores das carreiras gerais viram ser reposta, progressivamente, a situação em que estariam se não tivessem sido abrangidos pelo congelamento de sete anos, que decorreu entre 2001 e 2007. Ou seja: beneficiaram de uma reposição total. Isso sucedeu porque, tendo uma progressão dependente de pontos, não viram esses pontos ser-lhes retirados durante os anos do congelamento. Já aos trabalhadores das carreiras especiais, onde se incluem os professores, os magistrados e os militares das forças armadas - cuja progressão depende essencialmente do tempo - o governo ofereceu apenas parte desse tempo.
A principal justificação dada pelo governo é, além da questão da forma de progressão, a diferença do tempo médio de permanência em cada escalão. Nas carreiras gerais, cada "degrau" da carreira leva em média dez anos a subir. Entre os professores, a duração média é de quatro anos. Assim, o governo tomou por referência um módulo padrão de dez anos, atribuindo a cada trabalhador uma recuperação equivalente a 70% desse módulo. Aos professores foram concedidos dois anos, nove meses e dezoito dias, noutras carreiras especiais, como magistrados e militares - num diploma próprio, que aguarda promulgação pelo Presidente da República -, esse tempo foi ajustado para cima ou para baixo de forma a proporcionar o mesmo "impulso" na carreira.
Com esta medida, o governo defende ter encontrado uma solução "equitativa". Mas há algumas questões que tornam essa equitatividade menos clara.É verdade que nas carreiras gerais a permanência entre escalões é superior, mas também há menos escalões e o aumento salarial é maior a cada progressão, o que significa que à partida os professores e as restantes carreiras gerais irão beneficiar menos com os seus 70% do módulo padrão do que os restantes trabalhadores. Afirmar que estes últimos poderiam ficar numa situação de "desigualdade" face aos professores, quanto já lhes foi reposta a carreira na íntegra, é por isso uma conclusão questionável. Já a alusão de Costa ao setor privado sai fragilizada pelo facto de, no Orçamento de Estado deste ano, o governo ter decidido aprovar um aumento do salário mínimo de 580 para 635 euros na Administração Pública sem ter imposto tratamento idêntico para os trabalhadores do privado.
"A necessária extensão deste diploma aos demais corpos especiais, por si só, implicaria um acréscimo da despesa certa e permanente de 800 milhões de euros em cada ano".
O valor referido por António Costa abrange o reposicionamento total dos professores e das restantes carreiras gerais. Os números, no que respeita aos primeiros, têm sido muito contestados pelos docentes, que apontam para menos de metade dos 635 milhões de euros de acréscimo anunciados pelo governo, que ainda não tornou pública a contabilidade, escalão a escalão, que lhe permitiu chegar a estas contas. Mas o que parece francamente exagerado, nesta afirmação do primeiro-ministro, é que este acréscimo se traduzirá numa despesa "certa e permanente" para os cofres do Estado.
Uma despesa "certa e permanente", como a designação indica, é uma despesa que se prolongará indefinidamente para o futuro. Por exemplo, o aumento do salário mínimo. Mas neste caso trata-se de uma medida extraordinária, que irá beneficiar um grupo específico de profissionais. A menos que o governo esteja a contar que o atual corpo docente - por sinal um dos mais envelhecidos do mundo - se mantenha indefinidamente em funções, não se compreende como pode considerar que esta despesa adicional será "permanente".
No caso concreto dos docentes, o prazo da extensão real no tempo deste acréscimo de 635 milhões de euros dependerá de muitos fatores, como a idade dos professoresbeneficiados com a reposição - sendo que os que podem chegar em breve ao topo da carreira, e aos patamares salariais mais altos, são também os mais velhos -, a propensão de parte destes para se aposentarem antecipadamente, e o próprio calendário desta reposição que, sendo faseada, só produzirá todos os seus efeitos no final do processo.
É certo que uma parte destas reposições se refletirá nos valores das reformas dos docentes que entretanto se aposentarem. Mas será uma parte - e não um impacto total - visto que o valor da reforma é calculado com base numa média da carreira retributiva e não no último vencimento.
"A criação de um encargo adicional de pelo menos mais 340 milhões de euros entre este ano e o próximo devido ao pagamento de retroativos relativos a 1 de janeiro de 2019"
Este valor foi referido por António Costa como consequência da decisão do parlamento de antecipar, possivelmente com os efeitos a produzirem-se apenas em 2020 mas com retroativos a 1 de janeiro deste ano, a devolução de dois anos, nove meses e dezoito dias. Uma devolução que o governo previa fazer de forma faseada, com os efeitos a incidirem apenas no próximo momento de mudança de escalão de cada professor. Os números não parecem bater certo com os que constam de um "esclarecimento" divulgado a 30 de abril pelo Ministério das Finanças. No documento em causa, o gabinete de Mário Centeno estimava que até 2021, ano em que ficaria completa a devolução do período de tempo por si proposto, esta "mitigação dos efeitos do congelamento na carreira dos docentes" representaria um acréscimo de despesa anual de 196 milhões de euros. Poderia dizer-se que o primeiro-ministro falava do impacto a dois anos, mas Costa refere especificamente que este "encargo adicional" é "devido ao pagamento de retroativos relativos a 1 de janeiro de 2019".
Há vários compromissos eleitorais ainda por cumprir e que muito dificilmente serão alcançados até ao final da legislatura, com ou sem demissão do governo. Por exemplo, no final de 2018, de acordo com o relatório da execução dos programas orçamentais entregue em abril pelo Ministério das Finanças, ainda havia 690 mil portugueses sem médico de família (6,8%) do total e a ministra, Marta Temido, já assumiu que não será possível cumprir a meta de abranger todos os utentes. Igualmente incerta - ainda que o governo já há algum tempo não atualize os dados - é a promessa de garantir cobertura de pré-escolar para todas as crianças a partir dos três anos de idade.
(continuar a ler)
Sem comentários:
Enviar um comentário