sexta-feira, 12 de abril de 2024

A Frescura De Impressões, O Modo Directo De Sentir ...


A frescura de impressões, o modo directo de sentir que aprendi nos seus versos, apliquei-o a outros assuntos, a uma Natureza de ordem diversa. Assim, reparei que uma máquina é tão natural — porque é tão real, e, afinal, ser natural é ser real, se formos a pensar a fundo — como uma árvore; e uma cidade como uma aldeia. 

O que é essencial é sentir directamente e com ingenuidade as coisas — árvores ou máquinas, campo ou cidade. A minha sensibilidade predispõe-me a sentir a máquina mais do que a árvore, a cidade mais do que o campo. Não deixo por isso de ter direito ao nome de poeta. 

O essencial é sentir directa e simplesmente. Eu sinto directa e simplesmente. Sinto o complexo, o anormal e o artificial? É o meu modo de sentir. Logo que eu os sinta espontaneamente, estou no meu lugar, no lugar que a Natureza, criando-me assim, me impôs. Cumpro o meu dever. Chamam-me um «transviado». Não o sou. [...] e não transviado de mim próprio senão transviado [...]. Nasci para sentir as coisas simplesmente, tanto como vós; mas não nasci, como vós, para sentir só as coisas simples. 

Se eu sou eu e não vós, para que hei-de escrever como escreveis? Escrevo como [...] em mim é eu ser eu. Em que sou eu «transviado» em ser eu?

Para mim o único modo de transviar é criar um sistema, ou pertencer a um sistema. Há horas do dia em que sou materialista e outras em que sou ultramontano, completamente ultramontano. É conforme sinto. Acho isso natural.

Se, como a grande maioria dos poetas, eu seguisse um caminho trilhado, se eu fosse panteísta, espiritualista, protestante, católico (...), qualquer coisa que se saiba o que é e se pode definir, eu mereceria o nome de transviado. Porque ninguém nasce pertencendo a um sistema ou a uma filosofia, nasce pertencendo a um cérebro e a um sistema nervoso, e estes têm um modo de sentir e não uma religião, ou uma estética, ou uma moral qualquer.

Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.)

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