terça-feira, 10 de março de 2009

O Embrião É Um Ser Vivo ? - Para Ler e Pensar -

Entrevista a Francis Kaplan, autor do livro L´embryon est-il un être vivant? (Le Felin ed.) (2008)

PERGUNTA (Lucette Finas ) - A primeira coisa que me surpreendeu ao ler o seu livro "O Embrião É um Ser Vivo  ? " é que, contrariamente à opinião generalizada, a afirmação feita pela Igreja Católica de que o embrião é um ser vivo desde a concepção não resulta da fé - o que implicaria que nenhuma discussão sobre o assunto seria possível porque, por definição, a fé não pode ser objecto de discussões.

FRANCIS KAPLAN - O facto, que costuma ser ignorado, é que, até meados do século 19 , a
igreja considerou, explícita e oficialmente, que o embrião não se torna um ser vivo até o 40º dia
após a concepção - 80º, no caso das meninas - e que, portanto, o aborto apenas é homicídio a
partir desse momento .

É o que diz Tomás de Aquino [cerca de 1225-74], o teólogo que possui a maior autoridade na
Igreja Católica, é o que repetem Sixto 5º e Gregório 14 e é o que ensina o catecismo romano
de Pio 4º e Pio 5º.
E, se desde então a Igreja Católica mudou de opinião, não foi por razões teológicas, mas,
como diz Bento 16, por causa do que ela acredita que a ciência moderna afirma.
Portanto, uma discussão é possível - evidentemente, somente nos terrenos científico e
epistemológico.É de notar que 80 dias correspondem praticamente ao período durante o qual
o aborto é legalmente autorizado na França.

PERGUNTA - Como é que a ciência -e a epistemologia- podem demonstrar que o embrião não é um ser vivo desde a concepção ?

KAPLAN - Para isso, é preciso distinguir entre "estar vivo" e "ser um ser vivo".
Podemos afirmar que o embrião está vivo do mesmo modo que podemos dizer que o meu olho,
porque enxerga, está vivo , em oposição a um olho cego, que podemos considerar como um olho
morto; que minha mão, porque sabe segurar, é uma mão viva, em oposição a uma mão
paralisada, que podemos considerar uma mão morta no mesmo sentido em que falamos em
folhas mortas, tecidos mortos, células mortas.
Mas nem o meu olho nem  a minha mão são seres vivos. Um ser vivo é um ser que tem funções
ditas precisamente vitais, de tal modo que formam um sistema -ou seja, que mantêm vivo o ser
vivo e que, se uma delas deixa de funcionar, nenhuma outra consegue funcionar, o que faz
com que o ser se decomponha. Minha mão, meu olho, embora tenham uma função (segurar,
enxergar), não têm funções por si só que os mantenham com vida ; logo, não são seres vivos.
Eles só estão vivos  pela ligação ao ser vivo ao qual pertencem -no caso, eu, que sou um
ser vivo. São, como diz Buffon, "partes orgânicas vivas".
Quanto ao embrião, ele não possui praticamente nenhuma função vital; as funções vitais das
quais precisa para estar vivo são as da mãe.
É graças à função digestiva da mãe que ele recebe o alimento digerido do qual tem necessidade .

Necessidade da qual não poderia fazer uso se não tivesse sido previamente digerido pela
mãe; é graças à função glicogénica do fígado da mãe que ele recebe a glicose que precisa;
é graças à função respiratória da mãe que os glóbulos vermelhos de seu sangue recebem o
oxigénio de que necessitam; é graças à função excretora da mãe que ele expulsa materiais
prejudiciais, dejetos que, de outro modo, o envenenariam.

PERGUNTA - Isso significaria que o embrião é uma parte da mãe, assim como o olho é uma
parte do ser vivo ao qual pertence. Mas o embrião provém também do pai, e como é possível
que seja ao mesmo tempo parte de um ser vivo -a mãe- e parte de outro ser vivo -o pai? Não
devemos deduzir disso que ele é um novo ser vivo, independente tanto da mãe como do pai?

KAPLAN - Mas como pode ser um ser vivo, se não possui as funções vitais que o mantêm em
vida? De qualquer maneira, não é uma parte do pai, porque não é o pai que o mantém vivo.
Contrariamente ao que aparenta geralmente ser o caso, é essencial para um ser vivo ter uma
mãe, mas não lhe é essencial ter um pai. Certos animais nascem por partenogénese.

Um biólogo sul-coreano obteve - por sinal, inadvertidamente - um início de partenogénese
humana. Se ainda não foi clonado um ser humano, o fato de que seja proibido realizar essa
clonagem prova que ela é vista como possível.

E, se o óvulo cujo núcleo é retirado, o núcleo introduzido nele e o útero no qual é implantado
pertencerem à mesma mulher, isso será, de facto, uma verdadeira partenogénese.
E, se, um embrião obtido em tais condições -logo, um embrião sem pai- se desenvolver
normalmente, sem se distinguir essencialmente de um embrião com pai, a razão que a sra. me
apresenta para dizer que ele é um ser vivo não mais existirá , e restariam válidas apenas as
razões para se afirmar que ele não o é.

Por que, então, diferenciar um embrião com pai desse embrião sem pai, dizendo que o primeiro
é um ser vivo?

De fato, aquilo que chamamos de "a parte do pai" no embrião é uma parte de seus
cromossomas, e aquilo que chamamos de concepção corresponde, praticamente, a um enxerto
desses cromossomas no óvulo da mãe. E um enxerto nunca levou ao surgimento de um novo
ser.

PERGUNTA - Não se pode afirmar pelo menos que um embrião é um ser vivo em potencial, e
que destruir um ser vivo em potencial é quase tão grave quanto matar um ser vivo
"concretizado", já que um ser vivo em potencial, se não o destruirmos, irá necessariamente,
exceptuando algum acidente de percurso, converter-se num ser vivo "concretizado"?

KAPLAN - Necessariamente, como a sra. diz, que dizer em particular por ele mesmo, ou seja,
que essa passagem do ser vivo potencial ao estado de ser vivo "concretizado" se explica
unicamente por factores internos. 

Papel - o desenhista -, e ninguém dirá que destruir uma folha de papel é quase tão grave
quanto destruir um desenho.

Uma bolota de carvalho é potencialmente um carvalho, já que o solo no qual é plantada exerce
papel apenas nutricional e sua passagem do estado de bolota ao estado de carvalho se deve
unicamente a factores internos da bolota.

Pensa-se que o mesmo acontece com o embrião. A realidade não é essa: os estudos mais
recentes de embriologia -cujo alcance ainda não foi plenamente medido- mostram o papel
necessário da mãe.

Não é o embrião que se desenvolve -é a mãe que o desenvolve. É significativo o que declara
um dos autores desse trabalho: é a mãe que, "por meio da produção da serotonina periférica
no sangue, determina, durante mais de metade da gestação, o desenvolvimento neurobiológico
e a viabilidade futura do organismo que carrega".

Nunca se conseguiu chegar ao desenvolvimento do embrião apenas colocando-o num meio
meramente nutritivo; o que se obtém não passa de uma multiplicação desordenada de células.
Portanto, o poder é da mãe -o poder de dar a nascer um ser vivo-, e não do embrião.

PERGUNTA - Não podemos, mesmo assim, considerar que, na véspera do parto, o feto já é
um ser vivo? E, sendo assim, se não é um ser vivo imediatamente após a concepção, a partir
de quando o é?

KAPLAN - Estamos diante de um fenómeno de continuidade, como a calvície. E assim como,
no caso da calvície, não estamos reduzidos a uma única alternativa -calvo ou não-, já que é
possível ser mais ou menos calvo, no que diz respeito ao feto não estamos reduzidos à única
alternativa de ser um ser vivo ou não ser um ser vivo. A continuidade implica que o feto possa
ser mais ou menos um ser vivo.

No que diz respeito ao aborto, precisamos inventar um conceito novo -o de ser suficientemente
um ser vivo. E sua pergunta passa a ser: "A partir de quando um feto é suficientemente um ser
vivo?".

Isso dito, não podemos responder a essa pergunta de maneira rigorosa, assim como não
podemos responder com precisão à pergunta "qual é o número de fios de cabelo necessários
para que se possa dizer que alguém não é calvo?".

São limites necessariamente imprecisos. Por sinal, esse é o caso da maioria das constantes
biológicas: o número normal -ou seja, não patológico- de leucócitos no sangue é de 4.000 a 10
mil por mm3, mas nenhum médico dirá que quem possui 3.990 ou 10.050 é doente, nem o
tratará como tal.

Do mesmo modo, voltando à questão do aborto, convém inverter a pergunta: até quando o
embrião (ou o feto, nome dado ao embrião a partir do terceiro mês de gestação) não é
suficientemente um ser vivo .


E a resposta é simples: pelo menos até o final do terceiro mês, pois até então ele não tem
actividade cerebral, e um homem sem actividade cerebral é considerado clinicamente morto.

O que, na prática, corresponde ao prazo legal na França no qual os abortos são autorizados e,
em outros países que autorizam um prazo mais longo, corresponde ao prazo dentro do qual a
maioria das mulheres que quer abortar aborta, mesmo que elas possam legalmente fazê-lo
mais tarde.

PERGUNTA - Suas considerações  levam-no a lançar um olhar novo sobre o aborto?

KAPLAN - Acredito firmemente que sim.

Fonte: Folha de São Paulo, Caderno Mais, 13/04/2008

 (o português não foi adaptado) 

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