quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Pela Primeira Vez Patrões E CGTP De Mãos Dadas



Não fosse a inexistência de uma oposição e o Governo não poderia comportar-se desta forma, usando uma associação, a dos patrões, para dar cabo da greve e da credibilidade dos grevistas, com a ajuda da CGTP.

Se o tempo não estivesse tão incerto, talvez as notícias fossem outras. Mas, felizmente, o mau tempo tem dado descanso aos bombeiros e todas as atenções se viram para a greve dos camionistas. 

E o que descobrimos nestas maratonas informativas é melhor do que ir ver um filme de ação. Foram detidos, não foram detidos; 60 horas semanais são normais, 60 horas semanais não são normais; o ordenado dos camionistas é de 600 euros, o ordenado dos motoristas é de 1800 euros, e por aí fora. As contradições são muitas, mas há factos que são indesmentíveis.

Os camionistas têm um salário base semelhante ao ordenado mínimo nacional e só as horas extras fazem com que levem mais umas centenas de euros para casa. Mas, para isso, precisam de trabalhar as tais 60 horas semanais. [ E, só o ordenado base conta para a reforma]. E é aqui que vemos com estupefação um ministro falar nas 60 horas semanais com a maior das ligeirezas, quando o Executivo de que faz parte tinha como bandeira eleitoral baixar para as 35 horas semanais o horário dos funcionários públicos. Percebemos então que, para o Governo, só os trabalhadores do Estado é que merecem essas atenções, já que os camionistas podem bem trabalhar de sol a sol.

E o que dizer do sindicato associado à CGTP que está a negociar com a Antram um aumento salarial para 700 euros? Não deixa de ser irónico que um sindicato afeto à central sindical ligada ao PCP seja muito menos exigente do que o sindicato de Pedro Pardal Henriques. (...)

Não fosse a inexistência de uma oposição e o Governo não poderia comportar-se desta forma, usando uma associação, a dos patrões, para dar cabo da greve e da credibilidade dos grevistas, com a ajuda da CGTP. Rui Rio, aliás, sai desta história como o político mais inábil da atualidade. A proposta de querer adiar o conflito para depois das eleições legislativas está ao nível do pior humor que se faz em Portugal. Pior é mesmo impossível.

Vítor Rainho, Ji

Ler também:Os camionistas a defender a nossa democracia 

O perigo da extrema-direita não vem de um sindicato a lutar por 900 euros. Vem do desenho autoritário que o Governo está a querer impor.O perigo da extrema-direita não vem de um sindicato a lutar por 900 euros. Vem do desenho autoritário que o Governo está a querer impor.

O Sindicato dos Motoristas de Matérias Perigosas exige – numa greve que rompe com a maioria das greves relativamente inócuas até aqui realizadas – ser pago em salário base e não em subsídios e que o valor real total seja descontado para a Segurança Social e contado para a reforma. Novecentos euros é o que exigem. Um valor baixo. Porque no ISEG calcula-se o valor real de um salário mínimo em Portugal em pelo menos 1000 euros. Ou seja, 900 euros é um salário abaixo da reprodução biológica do trabalhador. Só para se alimentar, pagar casa e sustentar os filhos, e ir trabalhar no dia a seguir, são necessários pelo menos 1000 euros em Portugal.

Esta greve começa em 2018. A Fectrans, dirigida maioritariamente pela CGTP, está eleitoralmente comprometida com o apoio ao Governo actual. Ao romperem uma regra de ouro do sindicalismo – manter a independência face a qualquer Governo –, os dirigentes da Fectrans abriram a porta a uma ruptura com a sua base. Assinaram em 2018 um acordo em que os motoristas ficam pior do que estavam. Este acordo prevê isenção de horário por um valor fixo de 280 euros. Antes, os motoristas ganhavam 630 em salário base e mais outros 400 a 800 em horas extraordinárias (“ajudas de custo”, em grande parte). Agora, no acordo assinado pela Antram com a Fectrans, passam a receber 700 euros de base e 280 de isenção de horário. Isto é, vão trabalhar as mesmas 15 horas diárias por menos 300 euros.

A questão chave da isenção de horário foi demonstrada pelos serviços mínimos. Os trabalhadores limitaram-se a cumprir a lei, trabalhando oito horas. Ora, as empresas têm escalas de abastecimento que pressupõem o uso regular de horas extra. Este modus operandi destrói a vida e a saúde destes trabalhadores pela exaustão. Estudos provam que após quatro horas contínuas de condução o risco de acidentes é o dobro, e após oito horas é até dez vezes maior. O tacógrafo tem um limite de nove horas de condução, mas podem e trabalham mais outras cinco a seis horas por dia em cargas e descargas, tempos de espera, facturação, etc. Estas empresas dependem de 14 e 15 horas diárias de cada um dos seus motoristas para o “regular abastecimento dos postos”. Sim, jornadas de trabalho do século do XIX – absolutamente desumano.

O que se verificou nestes serviços mínimos já tinha tido lugar na greve dos enfermeiros – durante a greve havia mais enfermeiros a trabalhar do que em dias regulares, onde por escassez de força de trabalho nem se cumprem os mínimos. O caos piorou nos hospitais paulatinamente, demonstrando que a greve não foi a razão da decadência dos serviços. Acusá-los de “matar os portugueses” preparou, porém, o Governo para medidas musculadas sobre outros sectores, medidas que põem em causa a democracia e impedem o exercício do direito à greve, obrigando os trabalhadores a violarem a lei ou a deixar de exercer direitos fundamentais. O paradoxo é este – para defender a democracia eles arriscam penas de prisão por desobediência

A leitura de um parecer da PGR pelo ministro em directo, confessadamente feito em tempo recorde e usado para impedir o exercício da greve, sem ter tido contraditório, é um traço da bonapartização do regime. Com base neste parecer, desconhecido de nós, o ministro explicou que greve é quando o Governo quiser, como quiser. Greve é permitida se não puser em causa a produção... Como?! As greves são feitas para parar a produção! Essa é a razão de ser de uma greve. Os serviços mínimos só podem ser aplicados a emergências, e aí devem ser escrupulosamente respeitados. Mas nada além disso.

Há duas décadas, estes trabalhadores trabalhavam numa empresa pública chamada Galp, oito horas por dia e ganhavam o equivalente hoje a 1400 euros, dois salários mínimos e meio. Agora trabalham para PMEs que são subcontratadas das petrolíferas, que fixam um preço por quilómetro abaixo do custo real (alegadamente cartelizado). A Galp anunciou para este ano 109 milhões de euros de lucro.
O silêncio das Associações Petrolíferas é explicado pela “empresa enxuta”. A casa mãe tem no topo da pirâmide 5% de trabalhadores mediamente pagos, e as subcontratadas recorrem ao trabalho à jorna, à peça, e mal pago. Na EDP, os custos com Segurança Social são 4%, nas subcontratadas são perto de 30%. Como será na Galp e na Antram? Estas PMEs, normalmente nascidas a partir do desmembramento de uma grande empresa, às vezes até fazem outsourcing em que os próprios trabalhadores são “empresários”. Mas são as grandes empresas que fixam todos os preços de produção. A Galp e outros gigantes da energia elevam os custos de toda a economia, prejudicando um país inteiro.

O Estado considera tabu nacionalizar a Galp, mas normal contribuir para este caos empresarial flexibilizando a lei laboral. Mas faz mais – substitui as políticas de pleno emprego pelas políticas de desemprego. E é aqui que os sindicatos em geral e os partidos de esquerda são complacentes. Porque ninguém vive com 600 nem com 700 euros.

Ao baixo salário junta-se a electricidade subsidiada, a renda social, o subsídio social de desemprego, a cantina gratuita para os filhos, a isenção de taxas moderadoras, enfim, uma panóplia assistencial focalizada (e não universal), onde os sectores médios pagam cada vez mais impostos, e as grandes empresas cada vez menos. Em vez de um Estado social universal (para todos) baseado em impostos progressivos, temos um Estado assistencial focalizado (para trabalhadores pobres) sustentado por impostos regressivos. Ou seja, os sectores médios financiam as empresas pagando a assistência dos trabalhadores mal pagos. (...)

Os motoristas estão a defender a democracia porque estão a defender o emprego com direitos. Estão a defender a democracia porque estão a defender o direito à greve.

É uma tarefa colossal para um punhado de homens, mesmo que determinados. A sociedade portuguesa, e à cabeça todos os sindicatos democráticos, não os devem deixar sós. Não estamos a debater o carro de um advogado, mas os destinos de um país

( Excertos do artigo de Raquel Varela, Público )

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