Ricardo Paes Mamede, DN |
A redistribuição estará novamente na ordem do dia; os privilégios dos ricos serão postos em causa." O jornal que tantas vezes defendeu a liberalização, as privatizações e a desregulamentação dos mercados antecipa agora a necessidade de pôr tudo isto em causa, num regresso anunciado a uma espécie de social-democracia radical.
Há quem vá mais longe, sugerindo que agora somos todos comunistas. No espaço de poucas semanas passámos a assumir como normal e desejável que o Estado pague os salários da generalidade dos trabalhadores, que assegure a protecção social para todos e que organize vastas áreas da vida em sociedade, dando até instruções às empresas sobre o que produzir. Economistas insuspeitos defendem agora que as decisões de produção devem basear-se no valor de uso dos bens (isto é, na sua capacidade para satisfazer as necessidades humanas) e não no seu valor de troca (ou seja, no seu preço de mercado). Marx ficaria radiante.
Que a soma das racionalidades individuais se torna facilmente em irracionalidade colectiva. Que nestas ocasiões só o Estado pode desafiar a incerteza, promover a eficiência agregada e trazer de volta a confiança.
De repente percebemos que a coesão social e a noção de destino partilhado são fundamentais para combater o vírus. Se cada um trabalhasse apenas de acordo com o que lhe pagam, se cada um seguisse apenas o seu interesse próprio, enfim, se cada indivíduo se comportasse como os manuais básicos de Economia descrevem (e que muitos prescrevem) as sociedades colapsavam.
A política monetária dos bancos centrais evitou a falência dos Estados e estimulou as bolsas de valores. Mas nem por isso as populações foram poupadas aos custos da austeridade. Nem por isso as desigualdades diminuíram nem o poder financeiro e dos grandes monopólios mundiais foi posto em causa. Entre as mudanças assinaláveis estão derivas autoritárias em vários países, eliminando direitos em troco de promessas de segurança por cumprir.
Também agora a crise do covid-19 põe muitas pessoas a defender coisas inesperadas. Mas apesar do volume inaudito de socialização dos riscos e do papel activo dos Estados no combate ao vírus, há pouco de socialismo na situação actual.Uma parte da população trabalha a partir de casa pagando agora do seu bolso vários dos custos de produção, em troca de um salário igual ou menor do que tinham. Outra parte da população perdeu todas as suas fontes de rendimento e tem dificuldade em responder às necessidades do dia-a-dia. Outros ainda continuam a trabalhar, juntando aos salários miseráveis que já recebiam os riscos acrescidos para a sua saúde e a dos seus. Não há socialismo onde os direitos recuam. Não há socialismo numa sociedade onde a participação democrática e a representação dos trabalhadores estão suspensas.
Se depender de quem manda no mundo, a probabilidade de a actual emergência de saúde pública dar origem a sociedades mais justas e equilibradas é menor do que o risco de aprofundamento das dinâmicas que vêm de trás: mais pressão sobre salários e direitos, mais restrições à participação democrática, mais poder dos que já o têm.
Ricardo Paes Mamede, DN
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