De onde virá este “estado de condescendência” num país de língua afiada, desconfiança militante, culto da maledicência? E as elites, que dizer da sua amabilidade com as misérias do “tempo novo”?
Há uma quantidade muitíssimo considerável de gente que condescendentemente se dispôs a acreditar no país das maravilhas, acreditando até ser parte das maravilhas e vir a beneficiar delas; há mel que subitamente passou a escorrer das páginas e microfones de quase todos os jornais e jornalistas ou das palavras escolhidas de inúmeros comentadores e editorialistas que nos convencem do contrário do que vimos ou sabemos; há um mar de gente que parece acordar e adormecer protegida pela camada protectora da tal condescendência (ou deveria dizer indiferença?) que tudo acolhe e tudo engole. Sem estranheza que se note, ou estados de alma que se registem.
Um desafio e peras para uma observadora, e ando nisto há meses.
Basta apenas evocar um quotidiano ficccional feito de contas erradas vendidas como “controladas”; ameaças reais de desastre económico logo redimidas pelo fantasioso “novo diálogo com a Europa” do qual o país sairá supostamente vencedor mas só supostamente; a imperdoável venda da ilusão de que o “consumo” faria disparar o “crescimento” (temo que os números que aí vêm, alusivos à receita, estilhacem de vez a ilusão ); a decisão (oh quão datada) da introdução das “35 horas” já em desuso em toda a parte após as fissuras abertas nos tecidos económicos onde vigoraram com alta infelicidade; uma “Educação” a desfazer-se, alunos aflitos, pais desnorteados e apenas sindicalistas felizes e não me refiro agora de todo ao caso dos contratos de associação, mas àquilo que já não tem remédio: as alterações de fundo e substância ocorridas com o ano lectivo em curso, revogações, substituições, alterações, num galope descoordenado de mudanças contra o que estava, porque o que estava perdeu o direito de cidade.
Há parentescos familiares no governo para dar e vender, há amigos íntimos com responsabilidades de negociação reservadas apenas aos bastidores, há comportamento de “donos” em vez de atitudes de servidores públicos mas quem se incomoda por aí além com estas, como dizer? novidades? Os dias da ira deram lugar à terra prometida onde já não cabem “generalizados” protestos, ecrãs televisivos entupidos de indignação, “repúdio” de leis e medidas. É vida. A do tempo novo. Mas lá que espanta esta disponibilidade silenciosa para concordar, não fazer ondas, deixar-se ir em enganadores cantos de sereia, espanta sim.
vez sido assinado? Sabemos que não teria.)
O chefe do Governo acena com vacas que voam e oferece uma delas a uma senhora? Que ideia tão engraçada, original, inesperada, e nem quero pensar em Durão Barroso, Cavaco, Santana, Passos fazendo o mesmo com tão sedutora segurança quanto à graciosidade do gesto e à oportunidade da ideia.
O Chefe de Estado atribui (como nos iogurtes) prazo de consumo ao governo, marca horário para crise e… quê? Um laivo de estranheza, quando muito, face à manifesta infelicidade política do gesto mas, sejamos condescendentes, estas coisas acontecem, “foi o comentador que pregou uma partida ao Presidente” (ouvi eu, desgraçadamente).
Aflijo-me com a navegação: nem as rotas já percorrida parecem as mais indicadas para a nossa geografia, nem os rombos entretanto provocados deixarão o navio inteiro.
Dir-se-á que sou (muito) minoritária. Paciência, nunca será isso que me fará fingir que acredito na qualidade dos marinheiros.
Excertos do artigo de Maria João Avillez, 'A condescendência' , OBSR
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